Os nossos amigos
O nevoeiro desce sobre os montes como um manto gelado que vai tornando o dia numa bruma indefinida. Os pássaros chilreiam aflitos enquanto correm para os ninhos para proteger os pequenos recém nascidos do frio, os animais escondem-se e procuram abrigo daquele inverno inesperado em Julho. Mas a névoa não desiste e arrepia caminho por entre giestas e pinheiros, castanheiros e barrocas, vai descendo impiedosa insinuando-se por todos os caminhos e encostas que encontra.
A bruma vai descendo sobre a aldeia cobrindo os telhados e deixando um rasto de humidade e frio, os cães procuram abrigo e os gatos fogem disparados, instala-se o silêncio em plena tarde e uma escuridão macilenta que nos impede de adivinhar as horas. Entramos num limbo de tempo e espaço, estamos numa pequena ilha onde pouco se vislumbra para além de nós mesmos e da nossa exígua realidade. A mente divaga, por momentos perdemo-nos em lembranças como se o nevoeiro trouxesse com ele uma nostalgia difícil de expulsar. Os anos pesam enquanto se olha pela janela e se sentem os ossos a doerem da humidade. A força do hábito leva a que se baixe para por uma cavaca na fogueira, acende o fósforo e ateia uma pinha, que coloca na lareira… o fogo começa a despertar e cresce com as suas cores amarelo e laranja afastando por momentos a escuridão que se instalou.
Enquanto observa o lume a mente divaga e recorda tempos que já lá vão, quando o futuro era uma certeza e o presente se vivia de forma apressada. Por momentos deixa de ter as dores nas costas e nos ossos, volta a ter um brilho de esperança nos olhos ao recordar a criança que foi, a vida que viveu, os sonhos que realizou e as ilusões que perdeu. Sacode a cabeça tentando voltar à realidade e arrasta os pés até à janela olhando para o cinzento frio que rodeia toda a aldeia. Naquelas sombras brancas e frias começa a ver rostos dos que já partiram, olhos que sorriem da família que um dia foi sua, dos amigos que com os anos foram desaparecendo, fantasmas que se foram tornando a sua única companhia… Vê-os nas casas abandonadas e degradadas, nas que apenas são visitadas ocasionalmente, nos caminhos de silvas e giestas, nos bancos onde antigamente se sentavam e botavam conversa fora, nos campos que foram abandonados e nos sonhos quando finalmente se deita e o seu corpo cansado anseia pelo descanso mas a mente permanece activa teimando em recordar o que era melhor esquecer.
Afasta-se da janela recusando-se a ser engolido pelo passado, a velhice já alguém disse é quando as lamentações tomam o lugar dos sonhos, por isso recusava-se a ser velho e não se lamentava… mas também era realista e tinha deixado de sonhar. Ou talvez não… Sonhava que um dia a aldeia voltasse ao que era antigamente, que outros tomassem o lugar dos fantasmas e que o som afastasse a tristeza permanente em que a aldeia mergulhara.
Mais cedo ou mais tarde o nevoeiro teria de partir e o sol voltaria a brilhar, mais um dia para viver… Seria o primeiro dia do resto da vida dele, ou como muitas vezes pensava, estava um dia mais perto da inevitável e esperada morte…